O Milagre dos Andes: A história da Sociedade da Neve | Cultura Espanhola
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O Milagre dos Andes: A história da Sociedade da Neve

As histórias são ferramentas poderosas usadas pela humanidade desde tempos imemoriais para transmitir valores e ensinamentos às futuras gerações. Independentemente se são fictícias ou baseadas em acontecimentos reais, elas têm o poder de nos emocionar, assombrar e até mesmo inspirar.

E quando tratamos de histórias de superação, estes sentimentos são ainda mais intensificados.

Por isso, dedicamos o post de hoje para contar e também fazer um tributo ao fantástico relato do voo 571 da Força Aérea Uruguaia conhecido popularmente como “O Milagre dos Andes” e que voltou a ser lembrado com mais força nos últimos meses graças ao filme “A Sociedade da Neve”, fenômeno da Netflix e um dos selecionados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2024.

Venha conosco e conheça mais detalhes sobre essa história surpreendente!

 

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O início de tudo: rugby, mau tempo e parada na Argentina

A razão principal para a viagem que resultou no fatídico acidente girou em torno de uma partida amistosa de rugby que o time uruguaio Old Christians Club faria em Santiago do Chile. Para realizar o translado desde Montevidéu até a capital chilena, um avião Fairchild FH-227 da Força Aérea Uruguaia havia sido fretado pelos dirigentes do clube com o intuito de levar não somente os jogadores, mas também seus familiares e amigos.

O Milagre dos Andes: A história da Sociedade da Neve

Pedro Escobal via Wikimedia Commons

O primeiro imprevisto começou logo após a saída de Montevidéu em 12 de outubro de 1972, já que, devido ao mau tempo, o avião não pode seguir diretamente para Santiago como inicialmente planejado. Por questões de segurança, optou-se, então, por um pernoite na cidade argentina de Mendonza.

Foi somente na tarde do dia 13 de outubro que o Fairchild FH-227 conseguiu seguir sua rota original, atravessando a imponente Cordilheira dos Andes e levando a bordo 40 passageiros e 5 tripulantes.

 

 

O acidente

Ainda que a viagem tenha sido mantida, o tempo continuava ruim dada à baixa visibilidade e alta turbulência. Assim, o experiente piloto, Julio César Ferradas, e o copiloto, Dante Héctor Lagurara, pouco podiam fazer a não ser buscar auxílio nos instrumentos que tinham disponíveis.

Como a aeronave não tinha capacidade para transpassar os pontos mais altos dos Andes, eles decidiram descer um pouco mais ao sul em direção a Malargüe (Argentina) para em seguida virar a oeste no sentido de Curicó (Chile) e retomar a rota ao norte rumo a Santiago.

O Milagre dos Andes: A história da Sociedade da Neve

Wunabbis via Wikimedia Commons

A partir daí não se sabe exatamente o que ocorreu, mas supõe-se que o piloto e copiloto estavam se valendo de uma navegação estimada por conta do mau tempo e os seus cálculos, desafortunadamente, se provaram incompatíveis com a realidade.

Ao iniciarem as manobras iniciais para a aterrisagem por pensarem já estar sobrevoando Curicó, ambos foram pegos de surpresa pelos Andes argentinos bem à sua frente. Em uma tentativa derradeira, eles ainda realizaram uma breve subida, mas era tarde demais. O avião, por fim, chocou sua cauda contra um dos picos da cordilheira e em seguida bateu uma das suas asas que se desprendeu do restante e arrancou também a parte de trás do Fairchild, matando naquele momento 5 pessoas.

O que sobrou da fuselagem se deslizou morro abaixo até parar em um glaciar que, ironicamente, já naquela época tinha o nome de Valle de las Lágrimas.

 

Luto, desespero e resgate frustrado

Por conta do forte impacto, as cadeiras se desprenderam e se aglomeraram com violência na parte dianteira do avião, o que causou não somente um alto número de feridos como também levou a óbito pelo menos mais 7 pessoas, incluindo o piloto.

Depois do baque, ainda 33 pessoas permaneceram vivas, embora muitas delas estavam em um estado crítico que incluía desde fraturas expostas a traumatismo craniano. Com a chegada da noite, as gélidas temperaturas dos Andes se tornaram outro duro golpe para os sobreviventes que não tinham roupas e mantimentos adequados para lidar com aquele cenário. Improvisou-se uma cobertura na fuselagem com partes dos destroços do avião, mas isso não evitou que mais pessoas falecessem por conta do frio extremo e da gravidade de seus ferimentos.

Aquela seria a primeira de muitas noites tempestuosas.

O Milagre dos Andes: A história da Sociedade da Neve

BoomerKC via Wikimedia Commons

Dentre os sobreviventes, Roberto Canessa e Gustavo Zerbino eram estudantes do segundo ano de medicina e se provaram fundamentais para realizar os primeiros socorros dos passageiros mais debilitados. Concomitantemente, os demais que estavam em melhores condições físicas também foram essenciais para equipar o grupo com as provisões mais urgentes seja revestindo melhor a fuselagem para suportar um pouco mais do frio, desenvolvendo mecanismos para retirar água do gelo, consertando um pequeno rádio para se inteirar das notícias ou buscando comida e mantimentos espalhados pelas bagagens.

Há alguns quilômetros dali, as autoridades chilenas foram comunicadas do desaparecimento do avião e começaram as buscas pelo voo 571. Porém, por conta do considerável desvio da rota original bem como da cor da aeronave que se camuflava com o branco da neve, as equipes de salvamento tiveram imensa dificuldade em localizar o Fairchild, mesmo com as diversas tentativas dos sobreviventes de chamarem atenção para si.

Esta se tornou mais uma difícil provação para a moral do grupo que via os dias passarem, a comida diminuir e nenhum sinal de resgate a encontrá-los. Em poucos dias, o escasso alimento que tinham se esgotou e no dia 21 de outubro foram abalados com a pior notícia que poderiam ouvir: as buscas estavam oficialmente suspensas, visto que os empreendimentos se mostraram infrutíferos e as autoridades acreditavam que ninguém havia sobrevivido.

A partir daquele momento, os sobreviventes tiveram certeza de que estavam por conta própria.

 

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Difícil decisão, a implacável Mãe Natureza e mais perdas

Diante do contexto cada vez mais adverso, os sobreviventes realizaram diversas expedições para se localizarem e/ou tentarem algum contato com a civilização, mas até aquele momento, não haviam logrado sucesso. Em algumas destas andanças, porém, encontraram os corpos das primeiras vítimas do impacto.

Para além disso, a fome se tornava progressivamente mais difícil de suportar. O grupo muitas vezes se valeu da grande remessa de cigarros que seria exportada ao Chile pelo empresário Javier Methol, um dos sobreviventes, como uma forma de enganar seu apetite. Entretanto, isto não era suficiente e o terreno gélido não fornecia alternativa nenhuma para o grupo recorrer à sua necessidade mais básica de se alimentar.

Portanto, após dias sem comida, os sobreviventes tomaram uma pesarosa decisão que se tornou também um dos motivos pelos quais este acidente é tão conhecido: se alimentarem dos corpos dos falecidos como uma forma de garantir sua subsistência.

O Milagre dos Andes: A história da Sociedade da Neve

Gerard Prins via Wikimedia Commons

Normalmente, a antropofagia é destacada como o momento mais dramático deste caso. Contudo, de acordo com alguns sobreviventes, apesar desta escolha ter sido de fato muito custosa, outros eventos subsequentes de ordem natural trouxeram uma carga de terror ainda maior. Entre elas, uma avalanche que soterrou o avião e vitimou mais 8 pessoas como a esposa de Javier, Liliana Methol, e o capitão do time de rugby, Marcelo Pérez.

Após 3 longos dias, os sobreviventes conseguiram cavar um caminho de volta à superfície e depois desenterraram a fuselagem da aeronave. Além disso, mantiveram o ânimo para fazer novas expedições, sendo que em uma delas encontraram a cauda do avião e alguns mantimentos extras. No entanto, não conseguiram fazer o rádio da aeronave funcionar para pedir ajuda, obrigando-os a esperar o início do degelo em dezembro para organizar uma expedição mais longa.

Com o passar dos dias, o grupo teve que lidar com mais perdas seja pelo agravamento de seus ferimentos ou pela condição de desnutrição extrema. As últimas mortes reportadas foram de Arturo Nogueira, Rafael Echavarren e Numa Turcatti.

 

A expedição final e os sobreviventes

Após a morte de Numa e com o degelo cada vez mais avançado, os sobreviventes decidiram que era hora de partir para uma expedição de vida ou morte atrás de outros seres humanos.

Para esta tarefa foram escolhidos Roberto Canessa, Fernando Parrado e Antonio Vizintín. Este último, entretanto, voltou para o resto do grupo na fuselagem de modo que Canessa e Parrado tivessem alimento suficiente para a viagem.

Passados 10 dias de uma árdua caminhada entre as montanhas, os dois jovens finalmente encontraram um rio onde puderam se abastecer e depois de tantos infortúnios receberam um sinal de esperança quando Canessa avistou do outro lado da margem um homem montado em um cavalo que estava acompanhado por outros dois.

O Milagre dos Andes: A história da Sociedade da Neve

Héctor Maffuche via Wikimedia Commons

Canessa e Parrado tentaram a todo custo explicar sua situação, mas o barulho do rio não permitia que se ouvisse corretamente. Foi preciso que esperassem pelo dia seguinte quando o tropeiro chileno, Sergio Catalán, voltou com um papel e lápis e amarrou em uma pedra que lançou em direção aos jovens. Parrado escreveu a mensagem de socorro e jogou-a de volta a Catalán que fez sinal de concordância.

Mais alguns dias se passaram, mas enfim a salvação dos sobreviventes se concretizou. Canessa e Parrado foram abrigados na residência de Catalán e quando a equipe de resgate oficial chegou, Parrado entrou a bordo de um dos helicópteros para servir de guia até o local dos destroços.

Naturalmente, aqueles que haviam permanecido na fuselagem do avião explodiram em alegria ao perceber que finalmente haviam sido encontrados. Contudo, ainda teriam que passar por uma última prova. É que os helicópteros não tinham capacidade para levar todos de uma vez. Portanto, se priorizou que os feridos fossem os primeiros a serem buscados, enquanto o restante do grupo seria resgatado no dia seguinte.

Por fim, após 72 dias nas montanhas e contra todas as adversidades imagináveis, 16 pessoas sobreviveram. Abaixo segue a lista com seus nomes e um breve resumo do que fizeram depois do acidente:

 

  • Roberto Canessa: tornou-se um respeitado médico cardiologista infantil
  • Fernando Parrado: dedicou-se um tempo ao automobilismo e depois se tornou apresentador e produtor de televisão, sendo famoso por seus discursos motivacionais
  • Antonio Vizintín: tornou-se um empresário da indústria química, além de conferencista
  • Gustavo Zerbino: tornou-se presidente da confederação uruguaia de rugby, além de diretor de uma empresa química
  • Eduardo Strauch: formou-se em arquitetura e tornou-se um profissional de renome na área
  • Daniel Fernández: enveredou para o ramo empresarial, tornando-se diretor de uma empresa de tecnologia
  • Adolfo Strauch: terminou o curso de agronomia e se dedicou desde então à sua criação de gado
  • Álvaro Mangino: morou anos no Brasil e ao retornar para o Uruguai abriu uma empresa de ar-condicionado
  • Javier Methol: empresário do ramo de cigarros. Tinha quatro filhos com Liliana Methol. Alguns anos depois se casou novamente e teve mais quatro filhos. Morreu em 2015 aos 79 anos em decorrência de um câncer
  • Carlos Miguel Páez: formou-se em técnico agrícola, porém depois passou a se dedicar à publicidade
  • Roy Harley: terminou o curso de engenharia industrial e seguiu profissionalmente nesta carreira
  • Pedro Algorta: formou-se em Economia em Buenos Aires e viveu por muitos anos na Argentina. Regressou ao Uruguai e abriu uma consultoria
  • Ramón Sabella: tornou-se conferencista e empresário, tendo vivido por muitos anos no Paraguai
  • Roberto François: após o acidente se dedicou ao seu rancho como produtor agrícola
  • Alfredo Delgado: formou-se em Direito e atua como advogado
  • José Luis Inciarte: tornou-se um dos maiores produtores lácteos do Uruguai, mas faleceu em 2023 após uma luta de quase 10 anos contra um câncer

 

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O Milagre dos Andes na cultura popular

Mesmo após anos do trágico acidente, o desastre do voo 571 ainda desperta a curiosidade de muitos dada a incrível história de superação dos sobreviventes e as medidas extremas que eles tiveram que tomar para continuarem vivos. Por isso, é muito comum que excursões sejam realizadas até o local do acidente, onde um pequeno memorial com os restos das vítimas foi montado e os visitantes podem prestar suas homenagens.

O Milagre dos Andes: A história da Sociedade da Neve

Wunabbis via Wikimedia Commons

Ademais, uma série de livros também foram desenvolvidos, sendo alguns deles pelos próprios sobreviventes:

  • “Milagre nos Andes: 72 dias na montanha e minha longa volta para casa” – Fernando Parrado e Vince Rause
  • “Desde el silencio: Cuarenta años después” – Eduardo Strauch e Mireya Soriano
  • “Regreso espiritual a la montaña” – Daniel Fernández
  • “Alive: The Story of the Andes Survivors” – Piers Paul
  • “A sociedade da neve” – Pablo Vierci

 

Na área cinematográfica, uma das produções mais conhecidas é o filme estadunidense “Vivos” de 1993 baseado no livro de Piers Paul e que contava com Ethan Hawke no papel de Nando Parrado e Josh Hamilton como Roberto Canessa.

Mais recentemente, a produção da Netflix “Sociedade da Neve” dirigida pelo espanhol J. A. Bayona e baseada no livro de mesmo nome chamou a atenção tanto de público quanto de crítica por sua extraordinária retratação dos eventos, sendo possível identificar alguns dos sobreviventes em breves trechos da narrativa. O filme já ganhou uma série de prêmios entre os principais festivais mundiais de cinema como o de Middleburg, San Sebastián e Miami e está na corrida pelo Oscar 2024 como Melhor Filme Estrangeiro.

Se você ainda não viu, nós recomendamos bastante! Abaixo, você também pode conferir o trailer desta megaprodução:

 

 

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Esperamos que tenha gostado de saber mais sobre este relato espantoso e ao mesmo tempo admirável que marcou para sempre a história do Uruguai e da aviação, além, é claro, dos valentes sobreviventes.

 

Nos vemos em um próximo post!

 

¡Hasta luego!

Esther Fuentes
Esther Fuentes

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